17# Sonho de uma noite de verão
Sonhos, inteligência artificial, medo de avião e Susan Sontag
Não sei de onde veio meu medo de avião, se foi um processo ou se teve uma data definida, se foi quando meu avião arremeteu ao pousar em Salvador, ou depois que assisti um vídeo tenebroso de uma explosão durante a decolagem, talvez tenha sido uma soma de tudo, mais uma percepção mais aguda do quanto somos efêmeros, não sei. Só sei que, entre 2017 e 2023, apesar de viajar bastante ― a ponto de passar na mesma semana por Porto Alegre, Curitiba, Rio de Janeiro, Salvador e Maceió ―, não entrei nenhuma vez dentro de um avião.
Claro que se encerra aí um medo da morte. No entanto, de uns tempos para cá, percebi que não é pura e simplesmente um medo da morte, e sim um medo de morrer sem viver a vida que eu quero viver. Pode parecer que não, mas existe uma grande diferença entre esses dois medos, porque implica uma pergunta obrigatória: o que eu quero viver? Não sei. Talvez publicar mais um livro (e tenho novidades que não sei se já posso contar), talvez fotografar melhor, fazer um filme, conhecer mais gente, viajar para fora do país, quem sabe até morar no estrangeiro. Ou tudo isso junto, desde que eu viva ao invés de apenas comentar a vida.
Cansei de ser “metadramático”.
Sobre isso, gosto muito deste trecho de Susan Sontag em A morte da tragédia (Contra a interpretação, pág. 179), que, entre colchetes, vou modificar para enfatizar meu ponto:
[O mundo das redes sociais] reflete os sentimentos de uma era cujo maior prazer artístico é a autolaceração, uma era sufocada pelo senso do eterno retorno, uma era que vive a inovação como um ato de terror. Que a vida é um sonho, é o pressuposto de todas as [redes sociais]. Mas existem sonhos tranquilos, sonhos inquietos e pesadelos. O sonho moderno ― que [as redes sociais] modernas projetam ― é um pesadelo, um pesadelo de repetição, ação tolhida, sentimento esgotado.
Quem me conhece sabe o quanto essa ideia mexe comigo. Porque, além de todo meu histórico de autolaceração, e dos nossos sentimentos esgotados, meu inconsciente é uma fábrica inesgotável de bizarrices, gritos, celebridades, cenas de ação, cenários de guerra, bichos inexistentes e o que mais puder se inventar. Nos meus sonhos, que nunca são lá muito tranquilos, já enfiei o cano de um revólver dentro da cabeça da velha de Crime e castigo, revirando o cérebro dela bem devagar, já andei em um convés assombrado por uma versão demoníaca do Coringa, já sonhei com um pitbull radioativo, já vi Tom Cruise cavalgar um cavalo marinho gigante por cima do mar de Salvador, enquanto era seguido por um exército de centuriões romanos também em cavalos marinhos gigantes, todos em uma guerra contra um povo feito de peças de lego, para quem os sentimentos eram todos invertidos ao nosso mundo ― se a gente sofria, eles ficavam felizes, e por isso eles mandaram asteroides para destruir a orla soteropolitana.
Alguns anos atrás, por exemplo, me veio essa imagem (que ilustrei via inteligência artificial):
Exato, Woody de Toy Story descendo por um navio gigante na escadaria do Capitólio dos Estados Unidos. Não faço ideia do que me levou a sonhar isso.
E, no finalzinho de dezembro de 2023, me veio essa imagem (que também ilustrei via inteligência artificial):
O que a IA imaginou para o Carnaval de Salvador.
Não considero essa cena de fato esquisita, no máximo curiosa. Mas, por certo mecanismo interpretativo, ela me foi muito significativa: entendi que, por causa dos traumas e da depressão, meu comportamento cotidiano é querer ser tocado sem efetivamente ser tocado. Ser e não ser. Uma roupa de proteção contra o mundo, que pode ser festa e pode ser caos. Um campo de força me apartando dos outros.
Talvez esteja aí uma boa meta para 2024.
Tirar a roupa de astronauta e me misturar à multidão.
Afinal,
Um muro aleatório de Porto Alegre, foto tirada em setembro de 2015.
Bom 2024 para vocês.
Que Exu nos abra os caminhos.
Laróyè!
Um xêro,
Davi B.
menino, a tua psicóloga deve ficar contente com esse tanto de sonho bizarro hahaha
xêro!
Amei o texto!