#6: A Flip abriu um buraco no meu coração
Mas era exatamente o que eu estava precisando sentir
Laroyê, Exu
Davi Boaventura e Nélida Capela na mesa “Exu como tradutor e a linguagem corpórea” (também com a participação de Stephanie Borges que estava falando na hora e acabou saindo muito sem foco nas fotos por motivos de problemas técnicos na câmera)
Desde que voltei de Paraty, estou querendo escrever sobre a Flip, sobre como a Flip é esse desbunde, uma alegria, a Disneylândia da literatura, sobre como a cidade fica linda, cheia de gente, sobre como você anda na praça e dá de cara com Annie Ernaux, sobre como você encontra as amigas, revê os amigos, conhece gente que lê, e que surpreendentemente quer tirar foto contigo, de repente a coisa parece uma festa, tem um lançamento aqui, outro ali, uma mesa imperdível acolá, alguém aparece com uma cachaça, vai ter carimbó na Flipei, jogo do Brasil, há quanto tempo você não abraça tanta gente?, e quem é que lembra de beber água?, a garganta já foi embora e você morre de medo de ser Covid, você fala sobre tradução, uma mesa é sobre Exu, outra é sobre as mudanças na língua, alguém aparece com seu livro na mão, mais fotos, mais gente, mais risadas, mais abraços, mais conversas, você anda, anda, anda, anda, anda, e obviamente você se perde, e depois se encontra, porque lembra da sorveteria finlandesa, e do nada Camila Sosa Villada está caminhando ao seu lado, junto com todo o séquito dela, cantando, é de chorar de emoção, que voz bonita, e que linda que ela é, foram muitos momentos incríveis e quero e preciso agradecer demais a quem esteve por lá comigo (além de um obrigado especial a Flor Reis, já que, sem ela, nada dessa alegria seria possível), ainda que, ao mesmo tempo, você saiba o quanto aquilo tudo é um evento elitista, de gente rica, sem a participação efetiva dos moradores locais, e como as coisas ficam inacreditavelmente caras, desde a hospedagem ruim aos restaurantes sem estrutura, e como a organização não paga cachê para os participantes, apesar de todo o aporte financeiro e de mídia para o evento, e como as pedras do Centro Histórico inviabilizam qualquer acessibilidade para um cadeirante, e como os negros até são convidados a falar, mas que a plateia é majoritariamente branca, e como Paraty, para além da Festa Literária Internacional, continua sendo uma das cidades mais violentas do estado, então nada é tão simples assim e tenho mesmo muito a elaborar, é preciso parar por um segundo, descobrir um espaço no meio do caos e tentar pensar sobre, deglutir e digerir essa Flip de 2022.
Só que, quanto mais penso no assunto, quanto mais lembro de tudo o que aconteceu, quanto mais me pergunto sobre a Flip, eu entendo que não é sobre ela, a Flip é apenas um gatilho, um disparador, ela é um lugar que torna a conversa possível ― o que não é pouco, mas que não pode ser tudo ― e, portanto, se olhar somente para ela, vou olhar somente para a superfície. Não é sobre a Flip que quero falar. É sobre comunidade.
Em 2012, eu ainda morava em Salvador. Tinha lançado o Talvez não tenha criança no céu e não sabia bem o que fazer em relação à Literatura. A cada quinze dias, eu pegava o meu valente Corsinha 96, mundialmente conhecido como Chumacomóvel, e dirigia 42 quilômetros até o Porto da Barra para assistir ao sarau Pós-Lida e bater um papo com Saulo Dourado (enquanto Breno Fernandes, se não me engano, estava em Brasília estudando para o concurso do Rio Branco). Era o único contato literário que eu tinha na cidade e, por mais que Saulo fosse incrível, sendo um dos meus melhores amigos até hoje, eu sentia falta de mais gente, de mais trocas, de mais perspectivas, eu gosto mesmo é de bagunça.
Acabou que, no ano seguinte, me mudei para Porto Alegre. Fui fazer o mestrado, e depois o doutorado, em Escrita Criativa, na PUCRS. Graças às bolsas da CAPES, diga-se de passagem. E aí meu mundo virou de cabeça pra baixo: nem tanto pelo choque cultural e pelas aulas e pelos trabalhos acadêmicos ou pelos professores, muito embora todos esses elementos tenham uma participação importantíssima no processo, e sim pelas pessoas, pelos grupos de pesquisa, pela rede de apoio, você saía de casa em uma terça-feira à tarde e todo mundo que você encontrava tinha o mesmo objetivo que você, escrever, viver dos livros, contar histórias, era um desbunde, uma alegria, a Disneylândia da literatura, com a diferença de que não durou cinco dias, durou seis anos, mesmo que esses seis anos não tenham sido nada fáceis, aconteceram brigas, términos, racismos, falta de dinheiro, muito choro, pressões por prazos, muita saudade de casa, saudade de meus pais, de minha vó, de minha madrinha, de meus amigos, foi um período de muito aprendizado e de turbulência extrema e que só agora, depois de três anos de despedida, depois de uma Flip absurdamente intensa, consigo olhar com um pouco mais de cuidado.
E de carinho.
Porque, apesar de torta e heterogênea, existiu ali, para mim, uma comunidade, e uma comunidade não é só um amontoado de gente: é, por mais piegas que possa parecer, uma sensação de pertencimento, dá apoio, melhora autoestima, serve de escape, é o lugar onde você encontra risada, mudança, troca, conselhos & bagunça ― porque, como eu disse e repito, eu gosto mesmo é de bagunça ―, e, a partir dela, da comunidade, aquela sensação de estar sozinho no mundo parece um pouco menos ameaçadora, e às vezes até meio mentirosa. Não à toa, um dos dogmas literários que mais me irrita é essa história de que “a literatura é um ato solitário”. Até pode ser, no sentido de que, no primeiro momento, você escreve sozinho aquilo que um dia vai ser publicado como livro. Mas, sinceramente, essa ideia me parece muito mais outro resquício do Romantismo, com o gênio e sua originalidade que tudo sabe e tudo manda.
Por que tanto solipsismo?
“Eu sou eu e minhas circunstâncias” e, nas minhas circunstâncias ― que é, de certo modo, outra maneira de nomear os contextos ―, entram também as influências, as experiências, os medos, as vontades, as conversas, as paixões e vários etc., além da participação, no caso dos livros, de leitores-beta, editores, revisores, preparadores, livreiros, distribuidores, leitores e críticos, que, no final das contas, formam essa tal comunidade. Bom, posso estar sendo ingênuo, mas continuo acreditando fortemente que, se quisermos fazer da literatura um ofício relevante e que conversa de verdade com as pessoas do nosso tempo, precisamos reavaliar, incluir e construir em larga escala essa noção de comunidade.
Um livro não é só um livro.
Ele é feito de gente.
E ninguém nasceu para ser ilha.
Também por isso essa Flip de 2022, para mim, além de ter sido um evento de Retorno, foi também um evento de Encerramentos. Quase como uma espécie de Formatura. Encontrei em Paraty muitos dos meus melhores amigos e amigas, gente com quem convivo há quase dez anos, gente com quem fiz amizade recente, gente com quem converso todos os dias, de manhã até de noite. Depois de um ano trancado em vários ônibus, e depois de quase três anos de pandemia, morando na secura humana do condado de Curitiba, não podia ter sido mais incrível. Eu estava realmente eufórico. Mas, ao mesmo tempo, mudamos muito. Não somos mais alunos da PUC. Não temos mais vinte e poucos anos. Estamos em estágios diferentes do mundo adulto. As vidas se desenrolaram, cada um pegou seu rumo. E não falo isso com tristeza, nem com ressentimento, ou com nostalgia leviana, por mais que, particularmente, eu tenha dificuldade de lidar com a impermanência das coisas. É o curso natural, uns se afastam, outros se aproximam, o afeto se transforma, a amizade se renova e se ressignifica e por aí vai.
Exu abriu os caminhos.
Agora temos o mundo inteiro para conhecer.
Que bom.
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Inclusive, essa frase de Flávio Morgado, que descobri graças a Luciane Bernardi, deveria ser veiculada em inserções publicitárias na Globo pelo menos 39 vezes por dia:
Nenhum cartaz milita melhor do que o corpo alegre.
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PAUSA PARA INFORME PUBLICITÁRIO
Ainda não leu Mônica vai jantar??? Já leu e quer dar de presente??? Está com o espirito natalino a toda e quer mandar um livro até pro seu primo mala?
Então se liga no seguinte: estou com cinco exemplares do livro aqui em casa e quero revendê-los pelo mesmo preço que paguei, mais o frete módico, totalizando inomináveis R$ 35. Exato: trinta e cinco lulinhas reais. Vinte e cinco do livro + frete módico + envelope + meu suor até o Correio. Nem na Amazon fica tão barato. Na loja do Tio Bezos você paga, neste momento, R$ 0,43 a mais e não ganha dedicatória, além de contribuir para precarização das relações de trabalho.
Quer? Só responder este e-mail.
A gata, no entanto, não está à venda. É só decorativa. Não insista.
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E o ano acabou, minha gente. Quer dizer, ainda temos a Copa. E os golpistas desesperados. Mas, fora esses detalhes, já vamos para os devidos encerramentos de 2022. Como estou fazendo uma nova tradução para a joint venture TAG / Dublinense, certamente não terei tempo para outra dengoletter esse ano. O que só me faz pensar que 2023 já vou querer chegar aqui pegando fogo (passando minhas merecidas férias na Bahia, se Deus, Jah, Alá e os Orixás permitirem)! Sendo assim, agradeço demais pela companhia até aqui. Pela companhia, pelas respostas, comentários, compartilhamentos, a porra toda. São vocês que fazem esse troço acontecer. Então muito, muito, muito obrigado e, se você chegou até aqui e ainda não se inscreveu, aproveita, ô, é só botar seu e-mail na caixinha abaixo:
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Para terminar bem o ano, esse disco absurdamente delicioso que acabou de ser lançado e não sai dos meus ouvidos. Russo Passapusso, Antônio Carlos & Jocafi. Três gênios para quem já dedico o meu amor e que com certeza vão deixar o seu dezembro muito mais bonito e dançante. Um viva aos corpos alegres.
Boas festas e que Richarlison esteja convosco!
Até breve,
Davi B.
Te ver de perto, te abraçar, olhar nos teus olhos e conversar... foi das coisas mais lindas da Flip pra mim. Presente de verdade. Foi tão lindo e tão intenso estar naquele lugar que nem sei...
eu tô puta da cara comigo mesma que só li esse texto hoje! provavelmente o fiz sabendo de que se tratava de uma coisa importante e, assim, não era pra ler de qualquer jeito, com pressa.
eu gosto como tu encadeias os assuntos - da flip para a pucrs, para os novos rumos. concordo muito que a literatura tem sua parcela solitária, mas é comunidade. e que falta faz um grupinho pra falar de livros! tava precisando ler umas coisas assim, da vivacidade e da festa que é a literatura.
um xêro!