Tenho sentido uma dor horrível no peito, sinto agora enquanto escrevo, acabei de acordar, dormi mal, com essa dor no peito, ninguém sabe o que é, já fiz vários exames, holter, endoscopia, pode ser refluxo, gastrite, ansiedade, hemorragia, infarto, não sei, espero que não seja infarto, não deve ser, porque dura horas, hoje mesmo, durou a noite inteira, mas é engraçado como, bem nessas horas, o inconsciente parece que se esforça para me segurar — quem me conhece sabe como meus sonhos são insanos: uma nau portuguesa descendo o capitólio dos Estados Unidos com um boneco gigante de Woody de Toy Story dentro, Tom Cruise comandando um exército de centuriões romanos em cima de cavalos marinhos flutuando por cima do oceano, esse tipo de coisa, e hoje foi mais ou menos assim, quer dizer, não tão doido, mas foi forte e mexeu muito comigo, tanto que estou aqui escrevendo esse texto, depois de um bom tempo sem digitar uma palavra sequer (somente as palavras dos outros, nas traduções), até para não esquecer esses sonhos, tenho a impressão de que não posso esquecer: eles na verdade nem foram tão loucos assim, foram bem realistas, era uma casa, uma vila, meio que o bairro onde cresci, vários amigos, minha mãe, Greta Gerwig, um monte de gente, todo mundo feliz, festeiro, e eu muito triste, chorando o tempo inteiro, apático, e as pessoas querem ir para festa, querem se beijar, querem nadar na piscina, e eu nada, chorando, chorando muito, e alguém me pergunta o porquê, e uma hora eu digo: porque não acredito mais na palavra, a palavra é um artifício mental, é uma abstração e, por ser uma abstração, eu posso manipular, posso mentir, posso fazer o que quiser, ela não tem lastro no real, o signo é arbitrário, ele não existe, é linguagem, e linguagem pode ser muito, muito falsa, pode enganar, roubar, pode ser uma desgraça, e aí, no sonho, decido que vou fotografar, vou ser fotojornalista, porque aí, sim, vou trabalhar com algo cujo lastro no real é inegável, e vou pras ruas, estou na Garibaldi, aqui em Salvador, teve um acidente de trânsito, várias viaturas da polícia isolando a área, alguns corpos no chão, amontados, estou fotografando de longe, usando um crachá falso, pois não fui ainda contratado por nenhum jornal, mas minha câmera só tem uma lente 50mm e preciso me aproximar da cena para poder fotografar direito, e é o que eu faço, vou me aproximando, tiro uma foto, duas, três, de repente começa um tiroteio e eu me abaixo e começo a rastejar e vou pra perto dos corpos e tiro a foto, até que, também de repente, as viaturas e a ambulância e o corpo somem e no lugar aparece um casal de jovens idosos, cabelo escuro meio grisalho, gordinhos, os dois de camisa vermelha, penso que os dois são venezuelanos, eles veem a máquina e se abraçam e dão risada e faço a foto e essa situação se repete algumas vezes no sonho, uma cena de acidente, de morte, e depois minha atenção vai para algum casal na rua, alguém andando de skate, de bicicleta, gente sorrindo, se abraçando, beijando, e isso me faz ter um estalo que vai se transformar em palavras daqui a pouco, antes estou na vila de novo, é meio que uma pracinha do interior agora, muita gente, aquela festa, Jean Willys aparece, ele está sendo intimado por uma oficial de justiça negra, algum problema na câmara dos deputados, falo com ela: entendo como é, porque meu pai também foi deputado, e vou embora, as pessoas vão para uma festa e me vejo em uma espécie de casa colonial, paredes caiadas, um salão com chão de madeira empoeirada, vários bancos de igreja espalhados sem ordem nenhuma, estou vestido com um camisolão holandês branco, um culote azul, uma peruca idêntica a de Nicholas Hoult em A Favorita, e meias de compressão, e aí me lembro das pessoas sorrindo depois dos acidentes, depois das mortes, depois da dor, e digo para mim mesmo, finalmente: a vida volta, depois de tudo, a vida volta, não sei como, mas a vida volta, e começo a dançar, de um jeito meio desengonçado mesmo, gritando essa frase repetidamente: a vida volta, a vida volta, a vida volta — e acho que é isso, né, não há mais o que dizer, a gente precisa deixar a vida voltar.
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(mas, se for dor de coração o que eu estiver sentindo, valeu, gente, obrigado por tudo)
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Pensando em dançar, não consigo não pensar nesta foto de Anabela Mota Ribeiro, escritora portuguesa, que conheci agora na Flipelô de 2025: saí de uma casa no Pelourinho onde tinha acabado de escutar uma fala de Izabella Cristo, Mariana Paiva e Henrique Rodrigues, e dei de frente com Anabela dançando no meio da rua, ao som de uma batucada. Obviamente, eu não podia perder a oportunidade de fazer uma foto. E a foto foi essa aqui:
Um xêro,
Davi B.


Você sonha que é fotógrafo e posta uma foto, porque você é mesmo fotógrafo, claro - e não digo da foto, em si, mas do texto. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, mas talvez quem diz não tenha experimentado o poder que mil palavras têm de formar uma imagem.
Isto não foi um sonho, mas uma epopeia! Ou um roteiro de um filme que tinha de ser dirigido pelo Yorgos Lanthimos. E, sobre a dor, já pensaste que pode ser ansiedade?