Na minha vida adulta, comprei três câmeras fotográficas: a primeira foi roubada quando um sacana entrou no meu apartamento e, enquanto eu dormia, fez a limpa nos eletrônicos e no celular que ficava ao lado da minha cama; a terceira está aqui no meu colo agora; a segunda, eu acabei de enviar pelo correio para uma compradora em Minas Gerais. E óbvio que esse momento de desapego me fez pensar no que eu vivi com essa segunda câmera, que registrou todos os meus primeiros anos com Flor, fotografou vários grandes nomes na novíssima literatura brasileira e ainda teve tempo de passear pela festa de Iemanjá e fotografar uma gente pelada de vez em quando. Mas esse momento também me fez pensar em uma situação de quase vinte anos atrás, quando eu ainda estava no início da Faculdade de Comunicação da UFBA e entrei para o LabFoto.
Coisa boba, mas que, de certa forma, me magoou.
Comecei a fotografar em uma disciplina da faculdade, no segundo semestre de 2005, com orientação do magnânimo José Mamede. Terminada a disciplina, Mamede convidava alguns dos alunos para trabalhar como monitor do laboratório, e entrei na última leva daquele ano. Foi um período incrível, bem aquela coisa de jovem universitário: horas e horas de conversa, toda hora alguém aparecia com uma ideia maluca (é com você que estou falando, Jônathas), um drama quando alguém queimava o filme na revelação, as sextas-feiras que começavam a uma da tarde e só terminavam às três da manhã, as viagens para fotografar em Cachoeira e Maragogipinho, uma delícia. O melhor de tudo foi quando tivemos que contrabandear papel fotográfico da República Dominicana, ou de algum outro país do Caribe, sei lá, minha memória já pode estar meio danificada. O papel tinha subido absurdamente de preço, não tinha muito o que fazer: ou era arranjar esses canais alternativos ou não tinha aula de fotografia na faculdade.
Nessa época, eu ainda convivia muito com alguns amigos de infância. Não éramos amigos, éramos “irmãos”. Colegas de sala desde o primário (ensino fundamental I, vá lá), cada um conhecia a família inteira do outro, quase todo dia a gente se falava ou fazia alguma coisa, às vezes um basquete, às vezes um cinema, às vezes um açaí. Um grupo muito forte e unido ― e lembro, inclusive, de ouvir muita gente dizer como era bonito mantermos a amizade por tantos anos, que de verdade mesmo eram os amigos da infância, etc., etc. Bom. Em algum momento, teve o aniversário de alguém, na casa de Amigo X. Lá estávamos nós, como sempre. Na hora dos parabéns, um tio ou uma tia de Amigo X apareceu com uma câmera fotográfica e tentou entregá-la para Amigo Y, pedindo que Amigo Y fotografasse a cena.
Amigo Y, então, no auge do primeiro ou do segundo ano do curso de medicina, respondeu:
“Eu? Porra, até parece que vou estudar seis anos para ficar aqui apertando botão”.
E me deram a câmera e eu fotografei.
Amigo Y não percebeu nada, eu também fiquei quieto.
Mesmo sabendo que não é nunca só ficar lá apertando um botão.
E os anos passaram.
Em 2018, por causa de sérias divergências políticas ― vocês podem imaginar quais ―, cortei relações com todos eles. E, aos poucos, comecei a perceber como situações como essa do “ficar aqui apertando botão” não eram tão corriqueiras assim, e me magoavam, e me diminuíam a autoestima, e me deixavam inseguro, tudo de grão em grão, bem insidioso. No caso da fotografia, por exemplo, não tenho dúvida de como esse incidente influenciou para que, pouco depois, eu me afastasse das fotos, coisa que só retomei com mais afinco a partir de 2017, dez anos depois de sair do LabFoto, já estagiário do jornal A Tarde. E é muito doido pensar que, cinco anos depois do meu “término” com esses amigos, não me arrependo nem um pouco da minha decisão. Desejo o melhor para eles, torço por eles, mas nossas vidas mudaram muito, e estou feliz com a minha, sem aquela presença constante que, no fundo, era mais uma lembrança do que uma verdade.
Alguns amigos próximos já me ouviram contar essa história, mas é a primeira vez que falo sobre isso em público. Sei que é um assunto delicado, porque muitos de meus familiares aqui presentes os conhecem bem. E não quero demonizá-los. Não acho que sejam más pessoas, muito pelo contrário. Apenas viviam e repetiam as estruturas machistas e escrotas com as quais todo mundo precisa lidar todos os dias neste país, e terminavam reverberando as mesmas brincadeiras passivo-agressivas que acontece em absolutamente todo grupo de homens, em especial no Whatsapp e na mesa de um bar.
Talvez seja esse o motivo que me leva a repetir tanto essa conversa sobre comunidade, se cercar de gente que te levanta, estar com pessoas interessantes, aquele papinho que muitas vezes cheira ― e é mesmo ― o puro suco da positividade tóxica. Eu já estive do outro lado, em uma comunidade que não me fez bem, por muitos anos, anos demais, e estar nessa comunidade, por mais que seja difícil admitir, manchou alguns dos desejos e matou alguns dos caminhos que eu queria tomar e não tomei.
Não deixem isso acontecer com vocês.
E, quando quiserem fotografar, me chamem.
Estou cem por cento disponível para apertar botão.
Todas as fotos que ilustram esse texto foram tiradas com a minha segunda câmera fotográfica, a já saudosa Nikon D7200. Todas elas são fotos de orelhas de livro, e de livros que já li e recomendo. Lá em cima, Moema Vilela, Julia Dantas e Fred Linardi. Depois, Taiane Santi Martins e, por último, Gabriela Richinitti, ainda inédita e que ano que vem será publicada pela Dublinense, mas que, pelo olhar, já mostra que vai ser a rainha da porra toda.
Um xêro,
Davi B.
Nossa, senti por dentro esse texto. E fiquei me perguntando o quanto de nós ficou para trás por causa de um comentário de alguém próximo.
Que texto, Davi!