Estou há dias tentando escrever alguma coisa, fazer aquilo que sei (e posso) fazer, mas sigo com muita dificuldade, e, se escrevo agora, talvez seja apenas para aliviar um pouco da minha ansiedade, organizar algumas informações que se perdem pelos stories e tentar contar a alguns amigos e parentes, que podem não estar acompanhando as notícias tão de perto, um pouco da violência e da dimensão da tragédia que está acontecendo no Rio Grande do Sul neste momento.
Morei em Porto Alegre por seis anos, quase todos meus melhores amigos hoje são ou estão em Porto Alegre. Porto Alegre, para mim, é tão casa quanto Salvador. E, embora eu não esteja enfrentando um centésimo do que meus amigos e amigas estão passando, ver tudo o que está acontecendo é dilacerante. Como Julia Dantas, uma das pessoas mais importantes da minha vida e que precisou se abrigar na casa dos pais porque teve sua casa invadida pela água, disse em uma postagem recente: “Ninguém está bem, ninguém mesmo. Não resta uma única pessoa feliz no Rio Grande do Sul”. As imagens que estão explodindo pelas redes sociais falam por si: bairros inteiros alagados, água quase chegando na altura de viadutos, casas e carros sendo levados pela correnteza como se fossem feitos de papel, aeroporto e rodoviária inundados, hospitais evacuados às pressas. São relatos aterradores: gente perdendo a vida, vendo parentes e amigos sendo arrastados, perdendo animais, casas (e sonhos de vida) completamente destruídos, saques e mais saques às casas e comércios sem proteção, golpes por PIX, fake news por todos os lados, estupros nos abrigos, brigas nos supermercados, jacarés transitando pela inundação, empresas riquíssimas fazendo contribuições pífias, lixo se espalhando, 85% da cidade sem fornecimento de água e sem previsão de retorno, muitos sem luz, gente virando a madrugada em bicas para conseguir sair com dois baldes na mão, caminhões pipa cobrando R$ 20 mil para encher uma caixa d’água que não dura mais do que poucos dias, pessoas tentando quebrar o asfalto para beber da água que passa por baixo, fuga em massa da capital para o litoral em percursos que duram cinco, oito, dez horas, um caos generalizado. E, no meio da catástrofe, os políticos ― de novo ― exibindo despreparo e incompetência. As manchetes se acumulam: Porto Alegre não investiu um centavo em prevenção contra enchentes em 2023; O sistema de proteção antienchente falhou por falta de manutenção; Leite mudou quase 500 normas ambientais em 2019; “Não é hora de procurar culpados”, diz o governador; Marchezan perdeu verba milionária destinada a sistema antienchente1; Alerta da prefeitura chega após água avançar nos bairros Cidade Baixa e Menino Deus; Principal órgão do governo Lula para clima teve apenas uma reunião, e por aí vai.
Todos os governos, nas mais diferentes esferas, estão patinando. E a previsão de que a chuva seja intensa pelos próximos dias.
Para quem pode ajudar, essa ajuda é imprescindível e urgente. Água, alimentos e produtos de limpeza e higiene são necessidades incontornáveis e de primeira hora. Esqueçam o PIX oficial do governo estadual, que é ligado a uma entidade privada associada a bancos públicos e cujo dinheiro só vai chegar à população necessitada depois da enchente. Foquem em instituições e pessoas sérias que estão na linha de frente para de fato resgatar, abrigar e ajudar a quem precisa. Algumas delas, coletadas em várias postagens e newsletters, são: Correios (agências do sul, sudeste e nordeste), MST (PIX 09352141000148 ― Instituto Brasileiro de Solidariedade), MTST (apoia.se/enchentesrs); Casa de Cultura & Resistência (casadeculturaeresistencia@gmail.com), Deise Falci (resgate de animais ― PIX deisefalci@gmail.com), Patas Dadas (PIX contato@patadadas.com.br), Misturaí POA (apoia.se/misturaiurgente), Central Única das Favelas (doacoes@cufa.org.br), Felipe Neto (felipenetoajuda@gmail.com), Somos Colo de Mãe (acolhimento de famílias atípicas ― PIX somoscolodemae@gmail.com).
Ao mesmo tempo, infelizmente, por mais que as doações sejam absolutamente necessárias ― e são mesmo, ajudem o quanto puderem ajudar ―, precisamos entender também uma questão duríssima, o fato de que elas não vão resolver a situação de maneira substancial. Como todos os especialistas estão dizendo, enchentes e outros extremos climáticos vão acontecer com cada vez mais frequência. E não vamos nos enganar: nenhuma cidade brasileira está preparada para isso. Nenhuma. Não importa se o problema é de inundação, seca, frio ou altas temperaturas. As cidades brasileiras não fazem ideia do que fazer. Curitiba talvez possa alegar que os parques do perímetro urbano servem como esponjas, mas os bairros pobres continuam sem qualquer estrutura e o asfalto consome cada vez mais a cidade, muito mais pensada para carros do que para pessoas. Salvador, há anos, está dominada pelas imobiliárias especulativas e pelas facções criminosas (onde termina uma e onde começa a outra?), e quase não se encontram mais árvores pelas ruas. O lixo fica empilhado pelos postes e pelas calçadas manchadas de chorume. Coleta seletiva é uma miragem distante. Os deslizamentos e desabamentos de casas nos morros, no período de chuva intensa, apesar da redução nos casos, continuam frequentes. O nível do mar com certeza vai subir nos próximos anos ― e, a depender da geleira do fim do mundo, talvez estejamos vendo os últimos dias do Porto da Barra. Ruas importantes, como a Avenida Sete, estão tomadas de ambulantes e camelôs, que, no Carnaval, a grande fonte de renda da cidade, passam dias dormindo debaixo de um isopor para não perder o lugar e conseguir um dinheiro extra para o resto do ano. Viadutos estão infestando as avenidas. O transporte público é claramente insuficiente. Uma frase, aliás, não me sai da cabeça: não se evacua uma cidade inteira pegando uber. Não dá para deixar a vida das pessoas ser regulada pela mão invisível do mercado.
Bruno Toturra, jornalista do podcast Calma Urgente, escreveu melhor sobre isso, sobre a resposta complexa que precisamos enfrentar, e transcrevo aqui para que, daqui a umas semanas, quando as coisas se acalmarem, a gente não esqueça do quanto precisamos de mudanças profundas nas nossas organizações e nos nossos modos de ser:
A onda bonita e radicalmente positiva de solidariedade ajuda muito ― todo mundo que pôde doar fez certo ―, mas ela respeita, sem perceber, as mesmas lógicas de engajamento de conteúdo das redes. E segue a previsibilidade de como essa conversa deve se encerrar na próxima semana. Foi assim com Brumadinho, Petrópolis, na Bahia e no litoral de São Paulo ― e pode ser assim com o Rio Grande do Sul se algo não mudar na nossa forma de agir. É duro falar isso, porque é uma solidariedade bonita, mas, por mais que seja linda, é uma fração dos bilhões que o governo tem para dispor ― com Forças Armadas, com emendas parlamentares, grandes orçamentos, inclusive de grandes empresas que são parcialmente responsáveis por essa tragédia. Então sinto que até na solidariedade a gente despolitiza a tragédia, e se organiza simplesmente como uma corrente socorrista. Cada PIX deveria vir acompanhado com algum tipo de revolta, de cobrança, de responsabilização das pessoas que não colocaram esses recursos antes da tragédia acontecer. As doações aliviam a aflição de quem vive no Rio Grande do Sul e a sensação de impotência das pessoas que estão em outros estados, mas o problema permanece. O clima já mudou e a resposta é idêntica. A gente vê o governador de coletinho, o presidente fazendo sobrevoo dizendo que agora não é hora das diferenças. E o barco segue no mesmo rumo. [...] O clima já mudou, mas a gente não muda.
A gente precisa mudar. Muita coisa. O quanto antes. Ou vamos ter que lidar com uma conta que ninguém possui dinheiro para pagar.
Por isso, cuidem-se. Fiquem bem, na medida do possível. Ajudem quem vocês puderem ajudar. Votem com consciência e em pessoas realmente preocupadas com a sobrevivência e o bem-estar das pessoas. Cobrem seus representantes e também as empresas, os donos do poder. Briguem por transporte público de qualidade, por coletas de lixo decentes, por cidades arborizadas e preservação da vegetação local, por espaços de convivência mais humanos.
Vivam a vida do melhor jeito possível, é o que nos resta.
Ler este livro aqui pode ser um começo: Morte e vida de grandes cidades, de Jane Jacobs.
Beijos,
Davi B.
Nelson Marchezan Júnior (PSDB) foi prefeito de Porto Alegre entre 2016 e 2020 (ou, sendo mais preciso, entre 1º de janeiro de 2017 e 1º de janeiro de 2021). O atual mandatário da capital, e um dos sujeitos mais ineptos do estado, é Sebastião Melo (MDB), que derrotou Manuela D’Ávila na última eleição, em uma campanha de baixíssimo nível.